Prata e Bronze

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O Quarto Mundo de Jack Kirby



“A mistura de gíria e mito, ficção científica e a Bíblia, fez que o Quarto Mundo de Jack Kirby fosse um tanto cerebral demais, mas a sua visão permaneceu”. Essas palavras foram escritas pelo historiador Les Daniels em DC Comics: Sixty Years of the World’s Favorite Comic Book Heroes, de 1995.
Ele estava certo. Toda a meta-série que mais tarde ganhou o nome de Quarto Mundo usou idéias e conceitos que estavam muito a frente de seu tempo. E o legado de dessas idéias permaneceu, permeando o Universo DC como um todo.

Mas esse trabalho de Kirby, que hoje tem o status de cult, não teve uma aceitação imediata. Pelo contrário. Como disse Daniels, era “cerebral” demais. Não encontrou público suficiente para se tornar uma série de sucesso e foi podada sem piedade, não permitindo que Kirby desse a versão definitiva de sua própria história.

As histórias desses novos deuses é operática, com a eterna luta entre o Bem (representado por Nova Gênese) e  o Mal  (Apokolips). O senhor sombrio de Apokolips, Darkseid, busca a “equação anti-vida”, que o permitiria controlar os pensamentos de todas as pessoas. Seu filho, Orion, que foi criado em Nova Gênese, tenta derrotá-lo, em um embate com tons totalmente freudianos. Além de Orion, outros personagens entram no conflito, como o Forever People, que simplesmente é uma versão super-poderosa das gangues adolescentes que apareceram em diversos pontos do trabalho de Kirby. Mister Miracle também está no conflito, nascido em Nova Gênese e criado em Apokolips no lugar de Orion, história contada na belíssima “The Pact”, em New Gods 7 (1971). E até mesmo o Superman e Jimmy Olsen. E a Legião dos Jornaleiros e o Guardião, que foram criações de Joe Simon e do próprio Kirby em 1942.

Kirby criou os Novos Deuses enquanto ainda estava na Marvel e fazia as histórias back-up de cinco páginas publicadas em Thor, chamadas de “Tales of Asgard” e como o nome dizia, mostrava as histórias da mitologia nórdica. Essas histórias foram quase todas escritas pelo próprio Kirby. Esse fascínio pela mitologia fez que ele quisesse dar o passo seguinte, mostrar o Ragnarok e acabar com todo o panteão em Thor. Obviamente, isso não lhe foi permitido. E é claro, Odin (através de Stan Lee) consegue dar um jeito de derrotar Surtur e manter a lucrativa franquia.

É muito claro que os Novos Deuses é a continuação direta de Thor, apesar de tal fato não ter sido admitido oficialmente nem por Kirby nem (como obviamente não poderia deixar de ser) pela Marvel. Mas já na primeira página de New Gods 1, é mostrada uma batalha entre os velhos deuses e é impossível não ver Asgard lá. Na verdade, a página tem a palavra “Epílogo”. O epílogo é de Thor 177 (1970) a penúltima edição de Kirby no título antes de mudar para a DC. 




Em Forever People 5  é mostrado o elmo de Thor, examinado pelo jovem deus Lonar em uma visita a terra dos velhos deuses. É como uma declaração: “Essa é a continuação do que comecei lá... É o queria fazer... Matar os deuses antigos e criar novos”.




Quando ele resolveu sair da Marvel, imagino que o golpe foi grande.  E a DC sabia disso. Logo Jimmy Olsen Superman's Pal  133 (o título que ele aceitou escrever e desenhar em troca dos outros três)  chegava às bancas com um “Kirby is here!” (“Kirby está aqui”) na capa. A expectativa de ver um dos artífices do Universo Marvel que tanto incomodou a companhia na década anterior foi muito grande. E, em minha opinião, aí que estava o problema. Leitores e (principalmente) editores estavam esperando um novo Fantastic Four, algo dentro do que eles estavam acostumados. Kirby lhes deu o Quarto Mundo, uma meta-série que trazia três novos títulos (The New Gods, Forever People e Mister Miracle) e uma renovação enorme em outro que tinha se tornado algo apático (Jimmy Olsen). Uma mistura de cosmogonia, filosofia, religião e muito mais que apenas um aceno para a florescente geração hippie.  Ou como Grant Morrison escreveu na sua introdução para o primeiro Omnibus de Jack Kirby’s Fourth World: “Os dramas de Kirby são encenados em um teatro jungiano  com paisagens de simbolismo cru e fúria...”








Além do conceito de meta-série, várias séries que se sobrepõe para contar uma história maior, outra ideia de Kirby era que o Quarto Mundo era para ser uma série finita. Com começo, meio e fim, que seria publicada durante meses e depois colecionada em um único volume. De certa maneira ele simplesmente previu o advento dos trade paperbacks e uma indústria que hoje se preocupa em criar histórias em seis partes que caibam exatamente no formato.

Como disse, ele não conseguiu ver isso, pois as vendas não alcançaram os patamares estipulados (sejam lá quais tenham sido) e os títulos pereceram.  Foram publicados entre 1970 e 1973, e em 1976 Kirby abandona a DC e volta para a Marvel para uma curta passagem (até 1978).

Não seria o fim, é claro. Os conceitos eram bons demais para serem abandonados. E a DC tentou capitalizar. Ainda que esporadicamente, os personagens do Quarto Mundo apareceram em títulos da editora durante a década de 70. Em 1976, no último número de 1st Issue Special temos “The Return of the New Gods”, de Gerry Conway e Denny O’Neil, com a arte de Mike Vosburg.  E em 1977, a DC lança uma nova série (agora com a arte de Don Newton, continuando a numeração de onde Kirby tinha parado, o número 12). Essa nova série durou oito números, sendo cancelada no número 19 (1978). A história foi concluída em dois números da Adventure Comics (459 e 460).





Mister Miracle apareceu em três números da The Brave and the Bold, em encontros com o Batman e uma vez em DC Comics Presents, com o Superman.  E depois de um hiato de três anos seu título voltaria no número 19 (1977), também continuando a numeração de Kirby, escrito por Steve Englehart e belamente ilustrado por Marshall Rogers. O título foi cancelado no número 25, graças a DC Implosion. Os últimos três números foram escritos por Steve Gerber com a arte de Michael Golden, e a história nunca foi concluída.







No início dos anos 80, os Novos Deuses apareceram em um dos tradicionais encontros da Liga com a Sociedade da Justiça (Justice League of America 183-185), com as duas últimas partes desenhadas por George Pérez que viria assumir o título depois da morte de Dick Dillin. E, é claro, Darkseid é o vilão de “The Great Darkness Saga”, em Legion of Super-heroes 290 a 294.




Em 1984 a DC resolveu republicar os 11 números originais de New Gods, em seis edições em papel baxter, mais luxuoso. Eles chamaram Kirby para fazer as capas duplas e mais uma história para concluir a série. É. Teoricamente seria a sua versão final, o coda para a sua saga. Kirby queria que tanto Darkseid quanto Orion morressem em combate. Obviamente, isso foi vetado. Em seguida Kirby propôs “The Road to Armagetto”, que foi rejeitada também. Kirby então escreveu e desenhou “Even Gods Must Die”, uma nova história de 48 páginas que foi publicada no sexto número da reedição. Na verdade, a história funcionaria como um prólogo para “The Hunger Dogs”, a quarta DC Graphic Novel (1985), que incorporava páginas de “The Road to Armagetto” e nova arte, totalmente remontada. Essa graphic novel sofreu uma pesada interferência editorial. Afinal de contas, os personagens do Quarto Mundo ainda eram interessantes e não poderiam ter uma solução “definitiva” (i.e. a morte dos protagonistas como Kirby queria). O que Kirby desejava fazer em Thor, anos antes, e não lhe foi permitido se repetiu mais uma vez. Com os SEUS personagens.  É impossível não ver a ironia aqui.






O legado do Quarto Mundo de Kirby continuou. Da volta do título dos Novos Deuses no final dos anos 80 e 90 (suas terceira e quartas séries) até a Odisséia Cósmica, de Starlin e Mignola. Byrne escrevendo e desenhando Jack Kirby’s Fourth World, que foi substituído por Orion, de Walt Simonson. Grant Morrison usando profusamente os conceitos em JLA e Seven Soldiers e depois em Final Crisis, que mostra o fim do Quarto Mundo e o início do Quinto, coisa preconizada pelo novo deus  Metron em JLA anos antes no arco "World War III" : “Assim como Nova Gênese é o Quarto Mundo a Terra será o Quinto”.

Morrison, pela boca de Metron, também diz em um arco anterior da mesma JLA, “Rock of Ages”:

“Como você parecem crianças para mim. Como sua compreensão é pequena e ainda assim... Há uma semente em vocês... Os Velhos Deuses morreram e deram origem aos Novos. Os Novos Deuses, até mesmo eu, devem passar quando chegar a nossa hora. Nossa busca foi longa e nossa guerra continua, mas nós encontramos o berço planetário dos Deuses que Virão... Vocês são os seus precursores.”


Então é esse o conceito básico do Quarto Mundo: algo cíclico, embebido do pathos. E Kirby nos deu tudo isso ainda no início da década de setenta do século passado. 


Serviço


A DC lançou quatro Omnibus com todas as histórias do Quarto Mundo de Kirby em ordem de publicação, entre 2007 e 2008, em capa dura.  E entre 2011 e 2012, relançou-os em capa mole. 






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