Prata e Bronze

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Grimjack ou Como Fazer um Quadrinho de Ficção Científica e Fantasia

Em 1980, os produtores da peça de teatro Warp chamaram Mike Gold para que ele produzisse uma versão em quadrinhos da mesma. A peça tinha os designs de um dos grandes nomes dos quadrinhos, Neal Adams, que não estava disponível para produzir tal quadrinização.

Gold havia passado vários anos em Chicago como escritor freelancer, editor de um jornal underground, radialista, advogado e ativista político. Ele ajudou a desenvolver a National Runaway Switchboard, um importante órgão que cuida dos sem-tetos nos EUA. Seu trabalho nessa instituição o levou a DC, como o primeiro diretor de relações públicas da companhia, em 1976. Ele quadruplicou as vendas da DC no início do mercado direto, mas logo voltou a Chicago, para começar uma revista sobre o então nascente mercado de home vídeo. Gold sempre foi inquieto e procurava desafios.

Quando ele foi contato pelos produtores da Warp, ele decidiu que deveria existir uma nova editora. Ele chamou o advogado Ken Levin, com quem já havia trabalhado na National Runaway Switchboard para que ele coordenasse o lado legal da companhia que viria a se tornar a First Comics.

O início dos anos 80 trouxe uma série de modificações no modo de ver os quadrinhos. O nascimento do mercado direto, fora das bancas de jornal e indo para as lojas especializadas. Artistas recebendo os seus direitos criativos. E pequenas editoras fora de Nova York atraindo grandes talentos. E a First é o melhor exemplo dessas modificações.



A editora foi lançada oficialmente em 1983 com a dita adaptação de Warp por Frank Brunner,  a volta de E-Man (que tinha sido publicado originalmente pela Charlton em 1973) e dois trabalhos de Mike Grell,  Jon Sable Freelance e Starslayer (essa última havia sido publicada originalmente pela Pacific Comics e a First continuou a sua numeração, do número 7).




John Ostrander, ator e escritor teatral, começou a vender roteiros para Gold. Um deles era sobre um mercenário durão, mas coração de ouro. A ideia era que se passasse em Chicago, mas o conceito de uma cidade que era o nexo de várias dimensões (Cynosure, usada pela primeira vez na Warp Special  1) fez que ele o colocasse lá. O personagem, é claro, era John Gaunt, conhecido como Grimjack.
Lenin Delove, o novo artista de Starslayer fez algumas artes conceituais para o personagem, e Gold, apesar de ter ficado impressionado com a apresentação, sabia que era impossível para o artista manter a mesma qualidade em dois títulos.

Entra Timothy Truman. Ele havia estudado na Kubert School e tinha feito algumas histórias curtas para Sgt Rock, na DC, antes de começar a trabalhar na empresa de jogos TSR. Ostrander e Truman imediatamente se tornaram amigos, iniciando uma parceria que daria vários frutos no futuro.
Truman pegou a interpretação original de Delsol e fez um upgrade enorme. O artista declarou a revista especializada Back Issue:  “Eu li a proposta inicial de John e pensei ‘tanto o personagem quanto a ambientação têm que ser mais sujos, mais duros’”




Ele foi importantíssimo para a criação dos conceitos em Grimjack. Por exemplo, Cynosure, apesar de não ser uma criação nem de Ostrander nem de Truman, ganhou suas características nas mãos desse artista. Truman declarou: “Eu sempre fui um cara tranqüilo, nunca realmente me envolvi com drogas... Mas eu conheci (quando era baixista) várias pessoas assim, gente da pesada: músicos, viciados, caras que mais tarde se tornariam membros de gangues de motoqueiros, ex-Boinas Verdes, reservistas dos Fuzileiros Navais”. Obviamente, tais experiências ajudaram definir Cynosure e, principalmente, seus habitantes.



Após uma menção em Starlayer 8, Grimjack estréia em back-ups no número 10. Mike Gold admite que usou uma mão pesada nos roteiros. Ele diz: “Eu estava muito envolvido no processo do plot, às vezes envolvido demais até, porque a função de um editor é ser um advogado para o leitor, assim como para a editora. E também para os artistas envolvidos”.


É difícil saber o quanto das primeiras histórias de Grimjack é de Ostrander, Truman ou Gold. 
Ostrander escrevia usando o velho recurso do detetive durão, a narração em primeira pessoa, típica de Raymond Chandler. Mas o tom era certamente de Truman. Segundo ele, o movimento do “grim and gritty” dos anos oitenta começou em Grimjack.

Durante os oito back-ups somos apresentados a John Gaunt, Grimjack.  E descobrimos que ele tem um passado trágico. Ele foi um assassino, tentou ser feiticeiro, foi policial, agente secreto. E agora, assim como Rick Blaine em Casablanca, dono de um bar, o Munden’s. Ele é também um mercenário, vendendo sua espada (já que em muitas dimensões de Cynosure nem feitiçaria nem armas de fogo funcionam) a quem pode pagar. Ou não. Ele tem um senso muito particular de honra e não hesita em ajudar quem precisa.




Grimjack quebrou alguns paradigmas. Diziam que os quadrinhos de ficção científica não vendiam. E o que é pior, quadrinhos de ficção científica E  fantasia, com muito mais que um toque de pulp. Com um personagem de meia idade, enquanto a DC, por exemplo, insistia em deixar o Superman e o Batman congelados nos eternos 29 anos. Entretanto, os back-ups na Starslayer se tornaram um sucesso, e logo teríamos Grimjack 1 (Agosto de 1984), que se tornou o sétimo título da First e o que mais durou. E foi o segundo título da editora que mais vendeu, atrás apenas de Jon Sable Freelance, de Mike Grell.



Grimjack tinha vinte e oito páginas de história todo o mês. Para um artista tão detalhista quanto Truman, esse era um ritmo impossível de ser mantido. A solução encontrada por Gold foi a criação do back-up “Munden’s Bar”, que servia para dar mais luz ao mundo de Grimjack, além de permitir que novos criadores usassem os conceitos e personagens. Esse back-up já se inicia no segundo número, com uma história desenhada por Rick Veitch. Além de Veitch, criadores como Kim Yale (que viria a se tornar a esposa de Ostrander), Max Allan Collins, Steve Bissette, Jill Thompson, John Totleben e até mesmo Brian Bolland passaram por lá.




Ostrander e Truman começaram a desenvolver uma longa história que culminaria em “Trade Wars”, uma guerra entre várias facções de poderosos de Cynosure que controlavam pedaços da cidade, mas agora não estavam mais contentes com apenas esses pedaços, querendo controle total. Nada diferente das maquinações dos Corleone em The Godfather.




Enquanto isso, na linha administrativa as coisas não estavam tão boas. A First começou a atrasar o pagamento dos freelancers. Nem Truman nem Gold gostaram disso. Gold tirou férias e quando voltou descobriu várias ofertas de trabalho. Ele acabou indo para a DC, onde ficou por sete anos. E Truman deixou o título no número 19, antes da conclusão de “Trade Wars”. Ele foi para a Eclipse, que lhe ofereceu a chance de escrever e desenhar o seu próprio título, Scout. Ele fala sobre isso: “Eu odiei ter que deixar o título. Realmente odiei. Mas os cheques atrasados combinados com a chance de fazer o meu próprio material fizeram que eu tomasse uma decisão assim”.



O novo editor de Grimjack foi Rick Oliver. Para substituir Truman, o veterano da Warren e da Marvel, Tom Sutton foi contratado. Sutton ficou até o número 31, sendo substituído por Tom Mandrake.






Na metade da passagem de Mandrake pelo título, Ostrander mata Gaunt. Antes da DC fazer isso com o Superman. Segue-se uma história envolvendo a volta da alma de Gaunt para um clone. Ostrander empresta pesadamente de Michael Moorcock e seu Campeão Eterno na seqüência. A alma de Gaunt está destinada a reencarnar sempre, nunca conhecendo a paz. Desta forma, vários personagens se tornaram Grimjack. Além do original, temos o clone, um ciborgue, um alienígena, uma mulher. E um outro que logo se tornaria familiar: James Edgar Twilley.



Twilley aparece dois séculos depois e começou a se auto-intitular “Grimjack”. Era uma das encarnações de Gaunt e a tentativa de Ostrander de dar um frescor ao título. Afinal de contas, as maiorias das memórias de Gaunt haviam desaparecido e Twilley era basicamente um novo personagem. 

No número 55 (Fevereiro de 1989), o artista Flint Henry assumiu o título. Henry fazia parte do estúdio de Truman , o 4-Winds, e havia trabalhado com storyboards para a indústria de jogos eletrônicos.


Entre os números 65 e 69, uma história em flashback é contada, desenhada por Steve Pugh. E quando o back-up de”Munden’s Bar” terminou, Ostrander, Yale e Pugh criaram outro, “Youngblood”, que mostrava a juventude de Gaunt. Esse back-up foi até o penúltimo número, o 80.

Em Abril de 1991, com o número 81, Ostrander e Henry finalizaram a série. E a First não durou muito mais que isso. Já no final dos anos oitenta, a editora estava preferindo lançar one-shots e minisséries, no lugar das mensais. Grimjack era uma das exceções. E assim como tinha acontecido com Truman, os artistas das séries mais longevas da editora haviam sido substituídos, como no caso de Steve Rude (em Nexus) e Mike Grell (em Sable), fazendo que as vendas despencassem. Até mesmo a Classics Illustrated foi cancelada.



Em 1991 a First declarou falência, fechando as suas portas de vez no início de 1992, deixando as suas criações e fãs no limbo. Parecia que não veríamos nunca mais Grimjack ou qualquer de seus títulos. 
Mas não foi assim. Em 2001, Mike Gold foi contratado por Ostrander e Truman para tentar conseguir rever os direitos de Grimjack. Ele conseguiu um acordo, criando uma companhia onde ele, Ostrander e Truman (além de Ken Levin) tinham uma parte.




Isso permitiu que Ostrander e Truman se reunissem outra vez para publicar Grimjack: Killer Instinct  (2005),  uma minissérie em seis partes publicada pela IDW. A minissérie forma uma espécie de prequel para a série da First, mostrando a vida de John Gaunt até o momento que ele faz a sua estréia em Starslayer 10





A série teve uma crítica positiva enorme e a IDW começou a reimprimir as histórias da First em encadernados chamados The Legend of Grimjack. Oito coleções foram lançadas (e depois dois Omnibus).




Em 2009, uma nova história, The Manx Cat foi serializada como uma web comicdo site ComicMix. Através de um acordo com a IDW, ela ganhou uma versão impressa, primeiro como uma minissérie em seis partes e depois em uma encadernação. 




The Manx Cat é a história de uma estatueta, aos moldes de The Maltese Falcon, de Dashiell Hammett. A história é importante porque envolve viagens no tempo, reencarnação e os deuses antigos, dando um apanhado do passado e futuro de John Gaunt.  




Grimjack é uma série que merece ser lida por todos os fãs de aventuras, fantasia e ficção científica. Mas principalmente por quem gosta de uma história bem contada.
E isso não faltava nesse título.

Serviço

No Brasil, quatro edições de Grimjack saíram pela Cedibra em 1987 (publicando os primeiros quatro números da First). A Editora Abril, em 1991, lançou o especial de 68 páginas Grimjack Polícia das Sombras.




A First, antes da falência começou a reimprimir a série em Grimjack Casefiles. Durou cinco números.




A IDW lançou oito volumes de The Legend of Grimjack, mais dois Omnibus. Além das duas minisséries, Killer Instinct e The Manx Cat.



domingo, 30 de novembro de 2014

Os Deuses e Heróis de Jack Kirby, Greg Potter

Greg Potter é um roteirista americano que escreveu para várias companhias. Em 1971 ele começou a contribuir para a Warren Publishing, ainda adolescente. Para a DC ele criou, Jemm Son of Saturn, com a arte de Gene Colan e Klaus Janson em 1984. Ele trabalhou em vários conceitos para o relançamento da Mulher Maravilha em 1987. Foi o co-roteirista com George Pérez nos dois primeiros números, sendo substituído por Len Wein.


O artigo traduzido aqui apareceu pela primeira vez em The Comics Journal 59, de 1980, portanto o Quarto Mundo de Kirby era algo ainda recente, nem mesmo com uma década de idade. Mantenham isso em mente. Hoje temos cerca de quarenta anos que os conceitos de Kirby estão aí. Mas quando o artigo saiu,  tudo ainda era relativamente novo. E o impacto já existia.

Espero que gostem. 


Jack Kirby nasceu em 28 de agosto de 1917, filho de um pequeno alfaiate, em Nova York. Leitor voraz, o jovem Jack regularmente se escondia em sua casa da Rua Suffolk, se debruçando sobre as obras de Edgar Rice Burroughs, H.G. Wells e Ray Bradbury. Os amigos de Kirby, por outro lado, se ocupavam de pequenos roubos de frutas e brigas de rua. Conseqüentemente, o jovem futuro artista-escritor vivia em constante medo de ser “descoberto”. Fãs de livros em seu bairro eram considerados “maricas” e assim prontos para apanhar. Apesar disso, ele continuava a ler qualquer coisa que lhe caísse nas mãos, incluindo os pulps e os quadrinhos dominicais publicados nos jornais. Ele se tornou um grande fã de Dick Tracy, de Chester Gould, Terry and the Pirates, de Milton Caniff e, é claro, Flash Gordon, de Alex Raymond. Com onze anos ele começou a emprestar livros sobre desenho da biblioteca e começou a estudá-los. Com a idade de 14 anos ele se matriculou no Pratt Institute para um treinamento formal, mas ele nunca freqüentou as aulas. No mesmo dia em que Kirby se matriculou, o seu pai perdeu o emprego que pagaria as mensalidades do menino.




Finalmente, Kirby chegou ao seu primeiro trabalho artístico profissional para um pequeno syndicate de jornal. Com a idade de 18 anos. Logo conseguiu a posição de assistente nos estúdios de Max Fleischer. Seu trabalho era o “intermediário” nos desenhos de Popeye e Betty Boop. Kirby desenhava as figuras de Popeye do momento que ele levantava os seus punhos até o momento em que eles atingiam Brutus – ou Betty Boop, da hora que ela levantava uma torta até o momento dela lançá-la. Frame sobre frame do corpo humano em movimento. A experiência serviria como base para o estilo de quadrinhos de Kirby.

Passar de vez para os quadrinhos, vindo do estúdio de Fleischer,  foi bem simples. Kirby logo estava trabalhando como assistente para Blue Beetle, da Fox Comics. Na Fox, o jovem artista fez vários contatos importantes e seu trabalho começou a aparecer em produtos de diversas editoras. Eisner e Iger contrataram o novo artista para trabalhar em Jumbo Comics, para a Quality enquanto a Fawcett usou a série criada por Kirby, “Mr Scarlett”, nos primeiros números da Now Comics. Joe Simon, então um editor da Fox, gostou tanto o trabalho do garoto que, quando ele saiu da Fox para se unir a Timely, ele levou Kirby com ele. Simon e Kirby se tornaram a mais prolífica equipe da Era de Ouro. Eles criaram o Visão para a Marvel Mystery, Marvel Boy, The Fiery Mask e Captain Daring para a Daring Mystery e, em 1941, o Capitão América, o famoso campeão vestido de azul vermelho e branco cuja enorme popularidade fez que ele aparecesse em mais lugares do que na sua revista própria, Captain America
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Em 1942, a DC Comics, na época a rainha de vendas de quadrinhos, ofereceu a eles um bom dinheiro se eles trabalhassem para a companhia. Simon e Kirby aceitaram, produzindo Manhunter para a Adventure Comics, The Newsboy Legion (Legião Jovem) para a Star-Spangled Comics  (assim como os Desafiadores do Desconhecido e The Boy Commandos).  Mais ou menos na mesma época, outras companhias como a Crestwood Publishing, começaram a lançar outros trabalhos da dupla: Stuntman, Fighting American, Black Magic e Boy Explorers. Todos levavam a assinatura de Simon e Kirby. Se considerarmos apenas a quantidade, a dupla se tornou significativamente influente, uma força dentro da indústria, tanto em termos criativos quanto em vendas. Ainda assim, eles nunca pareceram sofrer de fadiga. O material era sempre original, com frescor e diversidade. Capitão América, Sandman e Manhunter eram puros super-heróis. Newsboy Legion e Boy Explorers eram quadrinhos sobre “gangues de meninos” (um gênero de quadrinhos inventado por Simon e Kirby, mas que teve sua origem no cinema, com filmes como “Dead End Kids” e “Our Gang”). Os Desafiadores do Desconhecido eram um super grupo. Black Magic lidada exclusivamente com histórias de terror.



Não havia muitas regras na colaboração de Simon e Kirby. Os dois vinham com idéias e os dois faziam o roteiro e a arte também. Kirby, entretanto, era o artista principal, geralmente fazendo todo o trabalho a lápis. Simon se preocupava com os diálogos e a arte-final. O produto era facilmente identificável pelas formas chanfradas grotescas de Kirby e o uso pesado da tinta negra de Simon – e a ação! As séries de Simon e Kirby eram invariavelmente cheias de figuras pulando, girando, batendo, caindo – fazendo de tudo menos ficarem paradas. Os quadrinhos se transformavam em microssegundos congelados no tempo, representando aqueles momentos fugazes de esforço atlético quando o corpo humano está em sua mais poética forma. Quando o Capitão América batia em um adversário, suas pernas se afastavam, seus músculos se contraiam, seu corpo se equilibrava magnificamente. E o rosto do seu inimigo se desmanchava como se fosse feito de massinha. Os garotos adoravam. Nunca antes a violência tinha sido tão feia e ao mesmo tempo tão bela. O produto de Simon e Kirby dava ao fã de super-heróis muito mais que o seu dinheiro pagava.

Infelizmente, a popularidade das capas e máscaras desapareceu no início dos anos 50. Os editores já não mais solicitavam os trabalhos de Simon e Kirby com o entusiasmo de antes. Com exceção de  Challengers of the Unknown, todos os outros títulos começaram ir mal nas vendas e foram cancelados.  A Crestwood Publishing faliu. Até mesmo Captain America, da Timely (rebatizado de Captain America’s Weird Tales em um esforço para fazer que ele continuasse vendendo como um título de mistério ao invés de um de super-heróis) acabou sendo cancelado. Joe Simon deixou os quadrinhos. Jack Kirby voltou a Timely, onde ele e o novo escritor principal, Stan Lee, começaram a lançar títulos de monstros em um fraco esforço de capitalizar com a popularidade de Tales from the Crypt, Vault of Terror e Haunt of Fear, da EC.



Com a chegada da Era de Prata, Lee e Kirby abandonaram os monstros e começaram com as maravilhas voadoras. A publicação de Fantastic Four  foi seguida de perto por The Incredible Hulk, Spider-Man, Daredevil, The Mighty Thor e The X-Men. Lee trabalhava com os roteiros enquanto Kirby se concentrava principalmente na arte. Mesmo em séries onde o nome de Kirby não aparecia, ele fazia os layouts. Era assim com o Homem de Ferro em Tales of Suspense e em Daredevil. A capa de Amazing Fantasy 15, que trouxe a primeira história do Homem Aranha foi feita por Steve Ditko sobre as linhas de Kirby. As idéias básicas dos personagens, entretanto, resultavam de conferências entre os dois criadores. Os super-heróis de Lee e Kirby eram como as composições de Lennon e McCartney.

Os anos sessenta trouxeram um rápido desenvolvimento à arte de Kirby. E ele resolveu ilustrar apenas três títulos. The Mighty Thor, Fantastic Four e o revivido Capitão América em Tales of Suspense. Para qualquer outra pessoa, a quantidade de trabalho ainda seria enorme. Para Kirby, que normalmente fazia três páginas por dia, era moleza. E finalmente ele começou a se concentrar na qualidade e não na quantidade. Suas figuras ganharam nova solidez e simetria, seus cenários um novo tipo de grandeza. Ele começou a fazer experiências, usando páginas inteiras para um único quadro e às vezes até mesmo páginas duplas. A criação de maquinário fantástico e o uso de colagem (algo que tinha sido tentado antes nos quadrinhos por Eisner, mas nunca tinha sido feito seriamente até Kirby). A ambientação de Kirby se tornou granítica, massiva, representando os padrões mitológicos maiores que a própria vida, belamente alinhavados pelo roteiro de Lee. Os leitores agora tinham algo mais que feitos fantásticos e uniformes coloridos para olhar – eles ganharam o Poder puro, com “P” maiúsculo, a visão de Kirby dos super-heróis. Poder, afinal de contas, é o que os super-heróis representam. E os super-heróis Marvel tinham poder suficiente para ser qualificados como deuses.

E um dos personagens mais populares de Lee e Kirby era um deus – um deus nórdico, para ser exato – o Poderoso Thor. Inicialmente o Thor da Marvel era um médico aleijado terrestre chamado Donald Blake que, achando um bastão místico em uma antiga caverna é transformado em uma réplica do lendário deus do trovão. Quando batia o tal bastão no chão, Blake podia controlar a transformação à vontade. Com o passar do tempo o quadrinho progrediu e Lee e Kirby começaram a adicionar outros personagens mitológicos ao cast de Thor: Loki, o deus do Mal, Odin, o Pai Supremo dos Deuses, Sif, a deusa da Beleza entre outros. O próprio Thor começou a usar “vós” e “vossos” bíblicos, mudando a sua forma de falar. Os padrões mitológicos estavam se tornando ricos demais para permitir que um mortal como Don Blake fosse o personagem principal. Com o advento de Thor 159 (1968), Lee e Kirby modificaram seu conceito original dizendo que era Don Blake e não Thor que era fictício. Thor evidentemente tinha sido vítima de algum plano que o fez pensar ser um mortal e não Thor, enquanto o contrário que era verdadeiro. A solução foi bem tola e superficial, mas foi necessária. Uma vez quea linhagem de Thor foi estabelecida como sendo da realeza divina (ele era o príncipe dos deuses, o filho e Odin), nem mesmo o céu era o limite para o herói que Lee se referia com carinho como “cachinhos dourados”. Então todo um universo de deuses foi acrescentado ao título: Balder, o Bravo; Volstagg, Fandral, Hela, Hogun e muitos outros que fizeram o seu nome muito além da ponte do arco-íris que levava a Asgard. Se os super-heróis são os deuses de nossa época, o Thor da Marvel demonstrou que os deuses deveriam ser os super-heróis dos tempos passados.





Em 1970 Kirby trocou de lado mais uma vez, retornando para a DC. O diretor editorial Carmine Infantino ofereceu ao artista/escritor controle criativo total em qualquer título que ele decidisse fazer para a companhia, mais um ótimo salário. Kirby não só desenharia para Infantino, mas também escreveria e editaria. A parte da DC seria agir apenas como gráfica distribuidora e gerente de negócios. Nunca houve uma oferta como aquela na história dos quadrinhos. E ainda mais surpreendente foi o fato de Infantino contratar Kirby. O artista estava morando na Califórnia naquela época para tratar da saúde delicada de sua esposa. Morar em Manhattan era normalmente requisito para quem fazia parte do staff da DC. Infantino estava quebrando todas as regras. Jack Kirby tinha sido oficialmente reconhecido como a mais procurada força dentro dos quadrinhos.







O projeto inicial de Kirby na DC foi tão incomum quanto o seu contrato. Ele assumiu um dos títulos mais antigos da companhia, Superman’s Pal Jimmy Olsen, e criou três outros: The Forever People, New Gods e Mister Miracle. Os quatro títulos contavam uma única história – uma história de deuses, uma tetralogia mítica. Kirby postulou a existência de dois mundos (localização desconhecida) habitados por descendentes das antigas divindades mitológicas. Nova Gênese, o primeiro, era um planeta utópico governado pelo benevolente Pai Celestial. A sua população consistia de belos e bondosos deuses, incluindo Lightray, Metron, Speedback e os jovens do Povo do Amanhã (Forever People). Orion, o mais poderoso (e belicoso) deus de Nova Gênese na verdade havia nascido no mundo-irmão, o sombrio Apokolips. Apokolips era governado por Darkseid, uma criatura malévola e grotesca cujos terríveis servos incluíam o sádico torturador Desaad, a senhora do orfanato Vovó Bondade e o nojento Slig.

A tetralogia de Kirby mostra uma guerra entre os dois planetas. O líder de Apokolips está em busca da “equação anti-vida”, um segredo milenar que se esconde em algum lugar do planeta Terra. Quem o possuir ganhará o poder de escravizar o universo. Nova Gênese, é claro, se opõe a seu gêmeo mau e o principal campo de batalha é a própria Terra. O resultado é um épico que toca nossas almas precisamente porque os deuses de Kirby são representantes daquelas almas, que são desconstruídas, alter ego por alter ego, e examinadas sob uma fachada de entretenimento. Darkseid é, literalmente, nosso “lado negro” – aquela parte de nós faminta por poder e sempre buscando meios de dominação universal. O Pai Celestial é... Mas eu me adianto. Por enquanto basta dizer que descobriremos o lugar do Pai Celestial na filosofia de Kirby logo a seguir.

Cada um quatro títulos da tetralogia de Kirby examina o confronto entre Nova Gênese e Apokolips de uma perspectiva diferente. Em Jimmy Olsen, o famoso repórter junta forças com o Superman e o Guardião, o governo dos Estados Unidos e uma revitalizada Legião Jovem para lutar em uma batalha do nível “Terra contra os invasores”. Servos de Darkseid vinham fazendo experiências genéticas em nosso planeta, criando monstruosidades para lutar na guerra. O governo americano, por sua vez, havia montado a sua própria produção secreta de clones, criando os seres conhecidos como DNAliens. Jimmy Olsen, pego no meio dessa confusão, luta contra ela com sua esperteza e seus punhos. Ele é a representação visível daquele grupo que participa de todas as aventuras de Kirby – ele é o jovem leitor, que se projeta heroicamente na batalha.

The Forever People lida com uma equipe de deuses adolescentes de Nova Gênese que vem a Terra em busca de paz e acabam se tornando aberrações pelos padrões dos humanos e alvos para os soldados de Darkseid. Se as maneiras e guerras de Nova Gênese parecem estranhas para nós, The Forever People nos lembra que também somos estranhos para eles. Afinal de contas, as personalidades dos Novos Deuses são simplificações das nossas. A estranheza dos jovens deuses com a nossa complexidade emocional é uma ampliação de nossa própria inabilidade de mensurar a motivação humana.

Mister Miracle é mais ou menos um título “normal” de super-heróis, mas ainda assim o seu lugar na saga de Kirby é central. Ele mostras as aventuras de Scott Free, filho do Pai Celestial, príncipe de Nova Gênese que tendo sido criado em Apokolips, não tem certeza de onde é seu lugar. Ele não é um terráqueo, ele não é um membro maldoso da raça de Apokolips, mas mesmo assim  a sua infância perdida não permitiu que ele formasse vínculos com o seu mundo de origem. Ele acaba se tornando um artista de fugas por mera desorientação e acaso. Infelizmente, a maldade de seu passado e os sonhos utópicos de sua terra natal nunca permitem que ele descanse. O Senhor Milagre é o homem comum, lutando para equilibrar sua vida entre pecados degradantes e ideais inalcançáveis, Quando estava para escapar do planeta de Darkseid (Mister Miracle 9, Agosto de 1972), ele fica entre o terrível ditador que escraviza todos e uma figura crística, um “sonhador” visionário” chamado Himon:

Darkseid: Fique, guerreiro! Deixe-me completar a destruição de Scott Free – para que vocêr possa viver na majestade que é o poder de Darkseid! ... O jovem tolo continua! Ele luta para se levantar! Mesmo que ele deixe Darkseid ele ainda assim encontrará a morte!
Himon: Se ele deixar Apokolips ele encontrará o universo!
Senhor Milagre: Deixe-me ser Scott Free – e me encontrar! (1)





(1)  N do T.: Aqui Kirby usa um jogo de palavras. “scot-free” significa  “ livre”.

New Gods é o mais “mítico” dos quatro, já que ele trabalha mais diretamente com as sociedades e Nova Gênese e Apokolips. A história que vamos estudar aqui é de New Gods 7 (Março de 1972) e detalha os eventos que levaram a presente guerra entre Nova Gênese e Apokolips. Ela é, em outras palavras, um flashback. Também é rica em entusiasmo e filosofia kirbyana.

A primeira e mais duradoura impressão que temos da arte de Kirby é de poder. Na primeira página, mesmo enquanto em repouso, Izaya e sua elegante esposa Aria são mostrados de forma massiva e poderosa. O rosto de Izaya é quadrado como um bloco. Sua boca, fina e ampla, corre por dois terços de seu queixo. O seu nariz é perfeitamente, quase matematicamente, centrado em na sua face, como um crucifixo de ponta cabeça. Sua cabeleira negra é pesada, e suas sobrancelhas demoníacas lhe dão uma aparência leonina. Sua expressão, no entanto – o leve contorno em seus lábios, o movimento líquido em uma pálpebra – reflete o momento de paz que ele e sua companheira estão compartilhando.




As mãos de Izaya são enormes. Mesmo com os dedos colados um no outro, ele poderia bloquear todo o seu rosto com uma única mão. Os seus bíceps refletem também o poder de seu ser. Eles são arredondados, cortados aqui e ali por diagonais e pesadas meias-luas. Essas pinceladas firmes dão solidez aos braços de Izaya. Sem elas, os bulbosos apêndices do guerreiro poderiam ser considerados flácidos. Os mesmos padrões aparecem em suas pernas. Pesadas pinceladas em negro correm paralelas aos contornos das pernas, mostrando ao leitor um senso de firmeza e solidez.

E a constituição de Izaya teria que ser poderosa apenas para manter o seu vestiário. Faixas de metal e couro envolvendo seus ombros, cintura, braços e panturrilhas. Suas luvas são grossas e apertadas como se feitas de um material robusto. A clava de guerra que ele segura tem a ponta pesada e grande, mas ainda assim ele a mantém sem esforço em sua mão direita. A clava, a propósito, não é apenas a arma de Izaya, mas também um importante elemento do storytelling de Kirby. Nas páginas um a quatro a clava é o símbolo do papel protetor do guerreiro na sociedade. Izaya o carrega prevendo invasões, mas ainda assim, quando essa invasão ocorre, a arma é inútil para evitar a tragédia. Na página 15 ela se transforma em um terrível agente de vingança e destruição.




É a clava que destrói Steppenwolf, fazendo que Izaya sinta pesar e diga: “Esse é o modo de Darkseid!”. É a clava que vemos sendo apontada para nós na página 20, terceiro quadrinho, enquanto o guerreiro grita: “Se sou Izaya, o Herdeiro – qual é as minha herança?” E é a clava que é destruída pela Fonte no próximo quadrinho em uma explosão que engolfa tudo. Finalmente, ela é transformada no cajado de pastor que vemos Isaya, agora transformado no Pai Celestial, carregando na página 24. A atitude de Isaya sobre o conflito muda e vemos a filosofia de Kirby sobre a guerra, com a clava refletindo tanto a atitude quanto a filosofia.




Avia também se mostra poderosa aos olhos de leitor, mas (como não poderia deixar de ser) de uma forma feminina. Certamente ela não é uma menininha frágil. Os contornos de seus braços são mais suaves, menos rígidos dos que de Izaya. Seu rosto é amplo, simples, simétrico e belo. As linhas que passam por seus membros são suaves, diferentes das do seu marido, que parecem ser esculpidos na madeira. O seu cabelo está preso na nuca, como um leque, lembrando as penas de um pavão, dando-lhe aparência elegante e régia. Seu ombro encosta-se à armadura de seu marido. Ela tem uma figura sólida, mas mesmo assim suave.



O cenário é arquetípico: Paraíso, o Jardim do Éden. Apesar de Kirby dizer que o virtuosismo não o impressionava, ele parece ter um senso nato de simetria em suas composições. Uma linha projetada da clava de Izaya até o pulso de Avia se inclina para baixo, da direita para a esquerda. A linha de flores atrás do casal tem uma inclinação semelhante. Entretanto, esse padrão para baixo é contrastado pela queda d’água e o penhasco, fazendo que olhemos para cima. Da mesma forma, se projetarmos uma linha para fora do quadro, do dedo do pé de Izaya até a sola de Avia, essa linha se inclina de uma maneira diametralmente oposta a linha anterior, mais uma vez contrastando-a e equilibrando-a. Esse tipo de perspectiva é exibida em trabalhos posteriores de Kirby. É difícil, creio, ter Alex Raymond como influência e não se preocupar com a perspectiva.

“In the Beginning” (No Início) é a frase de maior destaque no quadro. É interessante notar que Kirby, que faz um pesado uso dos deuses subjetivos, pega tanto da tradição judaico-cristã, que insiste em um deus objetivo. Como Ludwig Feuerback, o famoso filósofo do século 19, Kirby vê a adoração dos deuses como a adoração dos homens:

As pessoas estão cometendo um erro quando elas pensam que estão tendo um interesse passivo na adoração dessas imagens. Creio que deve ter havido algum nórdico com um capacete enferrujado e uma barba cheia de lama sentado perto de um rio, se cocando... eles se parecia com um joão-ninguém e ele sabia disso, mas de alguma forma ele queria ter uma imagem melhor dele mesmo, então ele inventou Odin e Thor, Hércules e Sansão... e adorando aquela reflexão ele próprio se tornou maior, seu capacete se tornou mais brilhante e sua barba mais sedosa e ele foi capaz d atirar aquele raio e aquele trovão. E eu creio que isso não mudou muito, apenas que agora somos mais sofisticados para racionalizar isso um pouco melhor. 

Entretanto, Kirby não vê a adoração do Deus judaico-cristão dessa maneira. Ele não chegou a sua teoria graças as conclusões de Feuerback que teologia é antropologia. Kirby ainda mantém a crença que seu Deus, o Deus da Bíblia é objetivo e separado da humanidade. Essas duas visões diferentes de divindade fazem que Deus, para Kirby, seja um mistério insondável. Então, enquanto ele escreve ficção clara e concisa sobre deuses míticos, ele pode colocar o seu próprio Deus dentro de seu universo ficcional, mas em termos obscuros e sem forma. “A Fonte” é a Fonte que é a Fonte, assim como uma rosa é uma rosa que é uma rosa. Kirby deixa claro que mito, e não teologia, é seu forte.
É claro, Isaya é o Isaias da Bíblia. Mas ao contrário do profeta bíblico, Isaya parece nos ensinar sobre o homem e não sobre Deus. “No início os Novos Deuses não tinham forma e nenhum propósito” nos diz mais sobre a criação da sociedade pelo homem do que da vida por Deus. A pomba bíblica bem mal desenhada (Kirby nunca está à vontade com formas leves e com penas) é uma lembrança, ainda que não convencional, que as maneiras do céu têm apenas um lugar simbólico na saga dos Novos Deuses. Kirby realmente está escrevendo sobre os homens. Os seus deuses são tão corpóreos quanto a sua arte é massiva.

As páginas dois a quatro contém o tipo incrivelmente dinâmico de seqüência de luta que é típica de Kirby. Linhas simbólicas de stress aparecem em todos os lugares. Punhos parecem literalmente explodir quando fazem contato. Onomatopéias são projetadas para seguir os movimentos que elas representam. Por exemplo, na página 2, quadro 4, “Zok!” segue o movimento da mão de Isaya. Na página 3, quadro 1, “Braam!” está em paralelo com o movimento de Steppenwolf. Na página 4, o primeiro quadrinho tem um “Ffzzak!” que chega ao leitor ao mesmo tempo em que atinge o corpo de Avia. Finalmente, as figuras de Kirby são robustas, equilibradas. Pernas abertas. A mão esquerda centrada com a outra enquanto ela dá um soco. Nós nos banhamos na glória do homem versus o homem, como se estivéssemos assistindo um balé ou um replay em câmera lenta, frame por frame, de um evento olímpico. A experiência que Kirby teve com Max Fleischer lhe é realmente muito útil.




O gosto de Kirby pelo maquinário fantástico e intrincado aparece com as “luvas assassinas” de Darkseid na página 4. 





As páginas 6 e 7, com uma splash page dupla, dá testemunha disso. Aliás, as páginas duplas são uma especialidade de Kirby. E sempre tais páginas estão recheadas de violência poética. Só pelo tamanho, elas acentuam o choque e a reverência apresentada na cena dentro dela. A questão desses quadros para seu criador não é se eles devem ser usados, mas sim o quando. E Kirby é um mestre de saber quando. Aqui, seu quadro, maior que todos os outros quadros anteriores, introduz um conceito que é maior que todos os conceitos anteriores: a guerra cósmica entre duas raças de deuses.









A página 10, terceiro quadro, apresenta um dos mais intrigantes dos Novos Deuses, Metron. Kirby havia criado vários personagens similares a Metron antes de ir para a DC. Na Marvel, ele e Lee conceberam o Vigia, o sábio careca que viajava pelo universo apenas observando. Foi necessário o Quarteto Fantástico para deixar o Vigia preocupado o suficiente para se envolver. Igualmente, Kirby criou o Registrador em Thor. O Registrador era um robô que,  mais uma vez, observava sem se envolver: o historiador supremo. Metron, entretanto, é o exemplo supremo do “observador cósmico” do artista/escritor. Ele é a mais pura personificação do desejo do homem pela gratificação do conhecimento, do saber. A sua libido é orientada para a satisfação intelectual, não sexual. Então, ele não conhece nem respeita nenhuma lei além das da ciência. Ele não se interessa pelas artes, pelos deuses ou pela moralidade. Na página 11, terceiro quadrinho, ele diz:

“Eu não tenho ligação nenhuma com os velhos deuses – ou com os novos! Eu sou algo – diferente! Algo que não foi previsto – nem em Nova Gênese, nem aqui!”



Ele é, na verdade, a sociedade americana. Não é nossa uma cultura de realizações científicas? Nós honramos nossos filósofos, artistas e teólogos da mesma maneira que fizemos com os nossos magos financeiros ou astronautas? Darkseid poderia muito bem estar falando com Werner Von Braum sobre a bomba atômica quando diz:

“Você vai nos trair com o tempo, Metron! Mas isso, isso você deve construir... para nós!”


No final, Metron não construiria apenas o “limiar da matéria” para Darkseid, mas também o Trono Mobius. Com ele, o estudioso galáctico se transportaria centenas de vezes de Nova Gênese para Apokolips em busca de conhecimento. Ainda assim, Kirby é o primeiro a reconhecer que o progresso, o verdadeiro progresso “humano” só pode ser alcançado combinado ciência e arte. Em Mister Miracle 9, Metron encontra o “visionário” Himon e seu diálogo é extremamente revelador:

Metron: Salve, Himon! Mestre das Teorias!
Himon: Salve, Metron! Mestre dos Elementos!
Metron: As maravilhas que construo nascem de sua mente! As estradas pelas quais viajo são abertas por suas gigantescas percepções!



Como um artista americano, Kirby não gosta da sociedade que considera o trabalho que ele faz como secundário. E Metron é a representação visível desse desgosto.

A violência na história de Kirby alcança seu clímax bem antes de sua conclusão, com a morte de Steppenwolf na página 15. Isso é muito incomum em uma história em quadrinhos regular de herói versus vilão. Izaya assegura esse fato na próxima página quando, quando no quarto quadrinho ele diz a Metron: “Eu sempre soube! O verdadeiro inimigo sempre foi o obscuro e humilde Darkseid!”. 

Quase sempre em histórias em quadrinhos, o verdadeiro inimigo é alguém facilmente disponível para levar um soco no nariz ou ser jogado na prisão. As coisas não são tão simples assim em New Gods. Os personagens míticos de Kirby podem ser versões simplificadas de muitas facetas psicológicas do homem, mas sua saga lida com todas essas facetas em interpretações complexas. Izaya percebe que a destruição de Steppenwolf não é a cura para todos os males que atacam seu universo. O “lado negro” do homem é sutil demais, impossível de ser aniquilado por mera resistência física. É por isso que, na página 18, “dentro de Izaya de Nova Gênese, algo morre” com cada ato de guerra e violência. Ele clama:

Nós somos piores que os velhos deuses! Eles se destruíram! Nós destruímos tudo! Essa é a maneira de Darkseid! Para salvar Nova Gênese, eu devo encontrar Izaya!”

O mal deve ser combatido em todas as frentes, tanto dentro quanto fora do homem – e um equilíbrio deve ser encontrado nessa batalha ou a própria batalha vai fortalecer o que o guerreiro quer combater. Não se pode combater mal com o mal, guerra com mais guerra. Izaya e Kirby tentam nos mostrar uma maneira melhor.

Os dois quadros centrais da página 18 são compostos de maneira espetacular. Primeiramente vemos Izaya olhando para o universo. Ele não é mais o guerreiro orgulhoso que nós conhecemos nas páginas um e dois. Seu rosto está entrecortado com pesadas verticais, suas sobrancelhas parecem com cavernas negras. Seus olhos não têm pupilas, uma reflexão de sua alma perdida. Nós olhamos para ele com reverência, mas ele não nos percebe. Sua dor é grande demais para isso. Seu cabelo desgrenhado ainda lembra a juba de um leão, mas a sua mão fechada dá impressão que ele é a estátua de uma fera – uma esfinge, talvez. Ou um leão da Babilônia – se perguntando o que havia devorado a sua civilização, civilização que uma vez tinha sido grandiosa.  Ele enterra seu rosto nas mãos no próximo quadro e nossa perspectiva acentua o movimento para baixo de sua cabeça. O bravo e auto-suficiente deus da guerra tinha caído ao chão. Ele percebe que ele precisa se achar no que lhe torna verdadeiro. 




Izaya busca o positivo no esforço de combater o negativo da “anti-vida” de Darkseid. A Fonte, o Criador, Deus com “D” maiúsculo é esse positivo.  Assim como Deus judaico-cristão que a Fonte representa, ela sempre esteve lá, “esperando calmamente que Izaya se comunicasse”, esperando que o homem fizesse o seu primeiro movimento. Kirby tece uma complexa tapeçaria baseada nos padrões de história mitológicos gregos e nórdicos, enquanto a colocava sobre uma fundação de ideais judaico-cristãos. Somente a força física de Hércules, por exemplo, seria suficiente para destacá-lo de sua raça, transformando-o no deus da força. Mas Izaya deve transformar o seu ser inteiro, corpo e alma, antes de se tornar o Pai Celestial.


As últimas quatro páginas detalham a troca de herdeiros entre Izaya e Darkseid, uma linha de roteiro mitológico familiar. Mesmo assim, até mesmo aí Kirby injeta elementos bíblicos. O pequeno Scott Free é descrito por Darkseid como o “cordeiro” de Izaya, um animal destinado ao sacrifício. Cristo, é claro, era o “cordeiro de Deus”, sacrificado em um mundo de pecados. Como um adulto, o Senhor Milagre nunca se tornará o salvador de Apokolips. Até mesmo o próprio Cristo teria dificuldades em trazer a salvação para Sodoma e Gomorra. Ele se tornará, ao invés disso, discípulo de Himon e traçará um curso entre Nova Gênese e Apokolips.




Orion, por outro lado, é a antítese da figura de Cristo. Ele é o filho do demônio mandado aos céus. O mundo onde ele agora habita vai, no final, “salvá-lo” – ainda assim, essa salvação nunca será completa. Orion se torna o mais terrível, e ao contrário do que deseja o Pai Celestial, o mais sanguinário dos guerreiros de Nova Gênese. Ao contrário de Izaya, ele não pode esperar encontrar a paz encontrando a si mesmo. Ele é o filho de Darkseid. Ele é o produto do mal. Sua vida inteira será dedicada a combater o que ele é e tentar transformá-lo no que ele não é. De todos os Novos Deuses, Orion é o mais atormentado e o mais valente. Kirby passa mais tempo delineando a sua vida do que qualquer outro personagem em New Gods.





Em Abril de 1972, Jack Kirby deixou Jimmy Olsen. Logo depois Carmine Infantino decidiu que , apesar da enorme aclamação que a tetralogia (agora trilogia) de Kirby estava recebendo dos fãs de quadrinhos, os leitores casuais não estavam comprando as revistas. Os números das vendas se equilibravam precariamente entre sucesso e fracasso. Em novembro, a DC cancelou New Gods e Forever People. Mister Miracle vendia melhor que os outros (graças provavelmente ao seu roteiro mais calcado nos super-heróis) se segurou até Março de 1974, quando ele também foi cancelado. Kirby ficou arrasado. Ele ameaçou a deixar a DC, mesmo ainda com o contrato vigente. Joe Brancatelli, do Inside Comics relatou que o próprio Infantino atravessou o continente para aplacar o criador, em Los Angeles.

Em Setembro, Kirby imediatamente seguiu com The Demon, uma mistura entre monstros e super-heróis lidando com mitologia medieval (especialmente a lenda do Rei Arthur). O personagem principal, Etrigan, era uma criatura com intenções nobres. Ele era a criação e servo de Merlin, em Camelot. Quando o Reino de Arthur caiu, o mago salvou o Demônio dando-lhe uma forma humana, e fazendo que ele esquecesse o passado. The Demon 1 reconta a história da descoberta de Jason Blood que ele é na verdade algo mais que carne e osso. Suas aventuras vão até janeiro de 1974 quando, no número 16, elas também são vítimas do machado editorial.

A criação de Kirby para a DC que mais durou foi Kamandi, The Last Boy on Earth. Publicada inicialmente em Novembro de 1972, Kamandi tinha sido concebido anos antes e originalmente era para ser uma tira de jornal. A história é sobre a “Terra-AD” (After Disaster, Depois do Desastre) – uma época que, devido a experimentos científicos que saíram de controle, a natureza se rebela. Animais de todas as espécies caminham e falam como seres humanos e lutam uns com os outros entre as ruínas de uma civilização que havia sido poderosa. Os tigres são a mais importante força nesse mundo. Liderados pelo grande felino Caesar e seu filho Tuftan, eles estão em batalha constante com hordas bárbaras de macacos inteligentes. Os leões são guardas de caça, capturando humanos e os colocando em reservas. Os ratos são nômades que atacam as povoações de todos os outros animais em busca de comida e bebida. O Senhor Sacker, um velho e horrível réptil, toma conta de uma enorme loja de departamentos, vendendo mercadorias exóticas o suficiente para serem qualificadas como circo de horrores (humanos treinados são a especialidade de Sacker). Exceto pelos mutantes, Kamandi é o único homo sapiens inteligente que foi deixado vivo, e ele tem uma atitude de revolta enorme. Ele conhece o seu passado, sabe que todo o evento histórico que ocorreu na Terra AD foi influenciado por seus antepassados. Kamandi tenta, sozinho, restabelecer a glória que foi a raça humana. Kamandi durou 59 números, tendo sido cancelado pela DC Implosion em 1978.




Outros títulos que foram dados a Kirby, depois do fracasso de The Demon,  incluíam Our Fighting Forces e Justice Incorporated (estrelando o herói pulp de Lester Dent, o Vingador). A First Issue Special mostrou três novos conceitos de Kirby: Atlas, uma nova versão do Caçador (Manhunter) e The Dingbats, uma gangue de crianças. Nenhum deles decolou, entretanto. Em Janeiro de 1976 Kirby voltou para a Marvel Comics, onde mais uma vez ele escreveu e desenhou Captain America, junto com suas novas criações The Eternals, Devil Dinossaur e Machine Man, um spin-off de 2001: A Space Odyssey, um título que Kirby produziu por dez números. Então ele abandonou os quadrinhos para se dedicar a animação, produzindo os storyboards para, entre outros, a nova série animada de televisão Fantastic Four.






Assim como Eisner, Jack Kirby é um storyteller estilístico. Suas figuras e cenários servem para dar o tom dos grandes temas de seu trabalho. Ainda assim ao contrário de Eisner, o seu estilo não é adequado para muitos tipos de gênero. Gangues infantis, super-heróis e deuses são seus pontos fortes. Foi o estilo de Kirby que popularizou o gênero dos super-heróis nos quadrinhos. Seu trabalho na Era de Ouro foi estudado e copiado infinitamente por todos os grandes artistas de super-heróis. Até mesmo Bob Kane e Jerry Robinson começaram a desenhar o Batman em poses de luta kirbyescas: pés separados, o braço fazendo um arco em frente ao rosto, o torso inclinado para trás com a força do golpe. Ele se tornou tão influente que seus muitos imitadores acabaram o enterrando. O seu trabalho já não era mais único, 

O seu rápido desenvolvimento na Marvel nos anos sessenta, entretanto, o coloca na ponta dos artistas de super-heróis. Seu novo senso de tridimensionalidade e volume durante aquele período elevou o poder que seu trabalho inicial tinha a novas alturas. Mais uma vez, existiam imitadores de Kirby, como John Buscema, Gil Kane e Barry Smith, em seu primeiro estilo. Mas o “Rei” Kirby, como Lee o chamava, tinha um estilo que nenhum dos imitadores podia igualar. E mais, o trabalho de Kirby na Marvel (e depois na DC) estabelece, em termos estilísticos, o que Raymond havia feito em termos românticos: a tradição da história gráfica épica.